Por que você acha que precisa ser tão perfeita?

Acredito que a grande pergunta que vai marcar o meu ano de 2024, o ano em que eu completo trinta anos, é: Por que você acha que precisa ser tão perfeita? 

Para além do discurso certeiro (porém tão triste e quase niilista) de fim do mundo iminente, eu preciso aceitar que sou humana e olhar com mais carinho e aceitação para os meus próprios desejos. Eu já fui muitas. Algumas não sou mais por hora, outras nunca deixarei de ser. Mas a maioria de quem fui eu sinto que fui esquecendo ao longo da jornada e agora ocasionalmente encontrei de volta. E esse meu auto-encontro me encanta, pois vejo pela primeira vez que nesse caminho há alguma calma, ainda que ela seja mínima e rodeada pelas usuais reflexões que cercam a minha mente.

Eu não quero fazer as coisas com pressa, muito pelo contrário, quero pôr em prática as minhas vontades e sonhos com muito cuidado e calma. Me pergunto que sentido faz colocar a perfeição acima do prazer. Ou pior: só ser capaz de ver prazer na perfeição. Eu sou uma dessas pessoas que às vezes cai nessa armadilha de não querer fazer se não for pra atingir o nirvana, ou de conseguir o que tanto quis e quase que instantaneamente querer mais, de sentir que tenho algo a provar para os outros. Às vezes sinto que a diferença entre eu e os demais é que para além dos mecanismos normais de extravasar a tensão que a sociedade capitalista exerce sobre os ombros do cidadão de classe média de qualquer país, como o álcool e a diversão, eu também vou colocar isso no papel nessa forma de texto. E o texto é um registro, uma prova cabal do meu crime de pensar e questionar o sentido de tudo isso. Olha eu aqui, já me defendendo antes mesmo que alguém atire qualquer pedra uma vez mais… 

Mas é claro que essa sensação não é só minha. É social. E ontem dois conteúdos me chamaram a atenção e me fizeram refletir especialmente sobre isso. Primeiro, assisti o curta metragem roteirizado e produzido por Manu Gavassi em que ela discute os selos limitantes e mercadologicamente construídos e impostos pela indústria fonográfica da nossa sociedade pós-moderna. Alguns dizem que Manu Gavassi é uma gênia e outros detestam convictamente o seu trabalho. Eu penso que Manu Gavassi é apenas uma mulher dos nossos tempos, assim como eu e tantas outras. Mas me chamou a atenção em seu curta-metragem a exposição do seu próprio sofrimento psíquico, bem como a implicação de que os demais artistas a despeito de se enquadrarem ou não nesses selos também sofrem. Tem suas individualidades suprimidas pelos rótulos, pela necessidade de produzirem somente aquilo que vende. O primeiro pensamento que me ocorreu foi de que se uma mulher privilegiada e com milhões de seguidores e de reais na sua conta bancária ainda sofre se cobrando por achar que sua carreira é um fracasso e que ela deveria fazer ainda mais, o que resta para nós, pobres mortais navegando através e apesar do capitalismo tardio?

Ontem também foi a data de lançamento do documentário sobre a vida e a carreira de Luísa Sonza, cantora colocada como controversa e que, quando observada de perto, é uma comum jovem adulta de vinte e quatro anos cheia de traumas e massacrada pela maldição de ter realizado os seus próprios sonhos. Muitas cenas me marcaram em sua história e me identifiquei com ela: também vim de uma família de filhos de imigrantes sem grandes posses e heranças, também comecei a trabalhar cedo como reflexo a minha adaptação a essa cultura familiar, também fui massacrada pela sociedade local por viver a minha sexualidade de forma livre quando jovem. Felizmente – como eu ainda teimo em crer que seja – eu também sempre me achei inteligente e talentosa acima de tudo e alcancei as minhas pretensões de estudos e carreira. Mas, assim como Luísa, mesmo em cima do que eu achava que seria o topo, não me senti de fato realizada.

A cena que mais me marcou nesse sentido foi um diálogo de Luísa com sua mãe ao telefone. Ela está em Los Angeles e a mãe no Brasil, ela chora copiosamente e a mãe lhe implora para voltar, diz que coloque menos músicas no álbum e volte mais cedo para casa, para perto do que lhe faz bem. Ao que Luísa lhe diz algo como: 

– Não é só sobre colocar menos músicas… É se eu serei convidada para um Grammy, se vão ouvir o meu álbum…

Luísa Sonza é uma das artistas brasileiras mais tocadas no Spotify em todos os tempos. Suas músicas não saem do topo das paradas, o seu corpo e seu rosto são definições do padrão de beleza vigente, sua conta bancária tem muitos zeros. Assim como Manu Gavassi, ela já tem muito sucesso, já tem números que até poucas décadas atrás sequer eram cobrados de artistas, como milhões de plays, views e seguidores em plataformas digitais. Mas, para sustentar esse patamar o preço é muito alto e vem em forma de sofrimento. Eu, que nunca tive a mínima pretensão de ser uma rockstar, que nunca persegui a fama, fiquei surpresa com o quanto me identifiquei com seu sofrimento mesmo dentro de meu contexto social incrivelmente mediano de quem seguiu uma carreira corporativa. Eu também tenho vontade de ser reconhecida pelo trabalho que faço e me frustro quando não ganho os meus pequenos “grammys do escritório”, ao que também ligo para a minha irmã, minha mãe ou meus amigos para chorar aqui há 8 mil km de distância, de Rotterdam, onde vim para trabalhar e me sustentar.

Cheia desses pensamentos fui consultar o meu parlamento da amizade. Filosofando juntos, chegamos a conclusão de que somos condicionados pela estrutura socioeconômica contemporânea a essa busca incessante por uma perfeição irreal, uma vez que, principalmente para nós que somos trabalhadores, o principal objetivo que molda nosso caráter e povoa os nossos sonhos desde a mais tenra idade é a superação das condições materiais de pobreza. Como falsa solução, o sistema nos propõe os “pacotes prontos de sucesso”, que longe de nos trazer o real sentimento de realização pessoal, nos prendem a armadilha da busca incessante pela manutenção da posição um pouco melhor que tão arduamente conseguimos chegar. Essa posição pode ser a de um trabalhador de escritório ou a de uma artista pop: pouco importa. Sempre haverá algo maior a ser alcançado, mais números, mais views, mais metas batidas, mais diplomas nas paredes. Luísa já é uma gigante no Spotify, Manu já entrou pra história do audiovisual brasileiro. E eu já trabalho para um órgão de inteligência intergovernamental. E ainda nos perguntamos se estamos fazendo o suficiente, se não deveríamos querer mais ou ter chegado até aqui sem tantos erros e se não abandonamos os nossos verdadeiros eus pra trás. E ainda a sociedade reforça quotidianamente que somos erradas e insuficientes e parece que sempre seremos.

Lembro de Vincent Van Gogh e das vezes que visitei o museu que conta a sua história em Amsterdã. Vincent pintava quadros que eram considerados verdadeiros lixos pela crítica da época. Ele foi tido como louco e excêntrico por aquilo que acrescentava de mais original. Apenas muitos anos depois de sua morte é que sua arte foi verdadeiramente apreciada e seu talento e dedicação tiveram reconhecimento. A busca por adequar-se às normas da sociedade da época sem sucesso lhe trouxe dificuldades financeiras, o que aprofundou o seu sofrimento psíquico e o levou posteriormente à morte, provando que a preocupação com o sustento não é besteira banal de que se possa livrar e de que se a maldição do sucesso é triste, a da necessidade é comumente ainda mais fatal. Entretanto, o que Van Gogh tinha em comum com os que conseguiram ainda algum reconhecimento em vida é o desejo e a busca ativa por tal reconhecimento. 

E me volto ao que disse no início do texto: eu nunca persegui fama, eu nunca cresci acreditando que eu seria a melhor em tudo. Isso foi sendo colocado em mim pouco a pouco ao longo da jornada e eu sinto que é a hora de me livrar pouco a pouco desse peso também. Não me refiro a largar tudo para trás, o que sei que ainda que queira, provavelmente jamais poderia fazer. Mas penso: não é porque um assunto me interessa que tenho que fazer um mestrado sobre ele, não é porque gosto de música que tenho que trabalhar com isso, não é porque gosto de me engajar em política que tenho que ser a presidente do Brasil. Como diz a célebre frase de Raoul Vaneigem: “A obrigação de produzir aliena a paixão de criar.”

Eu que sempre me senti frustrada por não ser uma escritora ou deputada agora acho que na verdade não quero alienar a minha paixão criativa, que eu prefiro não monetizar sobre ela, prefiro escrever nesse blog com algumas poucas dezenas de leitores pelo resto da vida com alegria e satisfação a ser a autora de um best-seller que não me traz entusiasmo, a estar presa em um mandato em que não opero em linha com minhas convicções. Se, casualmente, eu puder sustentar o tempo livre para o aprimoramento das minhas criações, como tirar um ano sabático para escrever, tudo bem. Do contrário, quero cada vez mais separar o que é pessoal daquilo que é o pagamento das minhas contas. Acredito nessa revolução nada silenciosa como a revolução de minha geração, o abraço quente e delicioso da mediocridade. Quero cada vez mais me perguntar: por que você acha que precisa ser tão perfeita? E ser capaz de responder: não preciso, não é mesmo? Eu já sou bem suficiente.

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