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Os Pássaros

Durante minha infância meu avô criava diversos tipos de pássaros. A priori eu os via como protegidos por ele, mas, conforme eu crescia, os pássaros livres a voar no céu contrastavam cada dia mais com aqueles que tínhamos em casa presos em gaiolas. Comecei a nutrir um sentimento amargo e adverso pela imagem dos pássaros engaiolados e, às vezes, conversava com eles em segredo perguntando se ansiavam pela liberdade.

Em meus devaneios vez ou outra pensava em uma fuga para os pássaros. Imaginava-os tomando os céus para bater asas e cantar tão breve a porta da gaiola fosse por mim aberta. Passei a visitá-los diariamente e a lhes contar os detalhes de meus planos subversivos em favor de sua liberdade, mas não reunia a coragem necessária para libertá-los, pois temia a frustração de meu avô quando soubesse que os pássaros partiram. Meu avô era um homem simples, da lida com a terra, e a criação dos pássaros era o seu passatempo e paixão. Aos pássaros dedicava todo o amor e um cuidado que ele jamais tivera com outros seres humanos. Eu não encontrava forma de confrontá-lo acerca de minha nova visão de mundo sobre a necessidade de liberdade daqueles animais. 

Mas, então, meu avô caiu doente e a evolução de sua doença tomou até mesmo as lembranças mais banais, de modo que me parecia que ele já não teria condições de se importar com a possível fuga dos pássaros. Ainda assim, em respeito a tudo o que ele representava para mim e para os pássaros, eu não os libertei. Até que a morte buscou o meu avô em seu sono e na noite em que voltei de seu velório fui finalmente até os pássaros e abri as gaiolas. Eles não voaram como o planejado. Ao contrário, ao notar a porta aberta se moviam mais ao fundo da gaiola para se esconder da tentação da liberdade. Eu deixei as gaiolas abertas durante toda a noite, mas nenhum dos pássaros de meu avô fugiu.

Eu cresci. E enquanto o tempo passava me vi muitas vezes confrontada por essa lembrança dos pássaros que recuaram diante de sua libertação. Ora isso me trouxe coragem para não ser como eles e fugir assim que a porta fosse aberta para a liberdade: a liberdade de fugir de amizades cansativas, de romances capengas, de empregos exploradores, da minha cidade natal sempre cinza e até mesmo da minha família – propositalmente ou não – um tanto quanto repressora. E ora me senti como os próprios pássaros de meu avô ao me ver presa a algo dentro da gaiola ainda que a porta estivesse aberta: principalmente no que tange as minhas divergências quanto ao sistema político, econômico e social vigente.

Vez ou outra eu ainda penso nos pássaros. Animais com asas, capazes de voar pelos céus, mas que se aprisionados acabam desenvolvendo gosto pela limitação de sua própria liberdade. Eles me apresentaram uma analogia delicada sobre a condição humana: nós, animais capazes de pensar, mas que construímos as nossas próprias grades e nos encerramos atrás delas por vontade própria, não importando até mesmo se alguém nos abre a porta. 

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